domingo, 23 de setembro de 2012

O presidencialismo de coalizão e a administração Pública

A Constituição, que no próximo ano completa vinte e cinco anos, procurou dotar o país de uma administração pública capaz de dar conta dos desafios que a complexidade da sociedade brasileira, sedenta por justiça social, oportunidade e desenvolvimento, impõe. O intento se apresentava, igualmente, como uma reação a uma história marcada pelo patrimonialismo, pelo clientelismo, pelo compadrio, pela confusão recorrente entre o público e o privado. Daí a exigência de concurso público para ingresso na função pública, a fixação de princípios reitores da conduta do agente público, como o da legalidade, impessoalidade, da moralidade e da probidade, mais tarde acompanhados, em função de emenda constitucional, pelo da eficiência, todos seguidos de regras estritas vinculantes do agir administrativo. O legislador, por seu turno, aprovou uma série de leis cuidando do tema, tudo para satisfazer a exigência constitucional de uma administração pública republicana, transparente, proba e eficiente. Há, todavia, uma imensa distância entre as proclamações do constituinte ou do legislador e a realidade que o cidadão enfrenta todos os dias. Problemas de má-gestão de verbas públicas, insuficiência de equipamentos, filas nos hospitais, deficiência na prestação do serviço público educacional, déficit habitacional, falta de saneamento ou infraestrutura sucateada são mais do que evidentes. Problemas, aliás, que se arrastam, há anos, porque não são enfrentados de modo racional e planejado pelos gestores públicos. Nossa administração pública, afirme-se, não é profissional, nem eficiente.
É evidente que o planejamento, a capacitação permanente dos servidores, a boa execução orçamentária, a definição de políticas públicas adequadas a partir da eleição racional das prioridades, o tratamento do cidadão com respeito e consideração, o combate à corrupção e às más práticas administrativas, a participação dos implicados no universo das escolhas públicas, a radicalização da transparência, tudo isso conforma um feixe de sugestões úteis para a melhoria da administração pública. Ora, sobre o tema, sempre fascinante, há farta literatura e os bons gestores, com apoio nos estudos mais estimulantes, não medem esforços para aproveitá-la.
Há, todavia, uma questão que tem passado ao largo dessas discussões. E ela envolve a organização constitucional dos poderes. Promulgada a Constituição de 1988, o cientista político italiano Giovanni Sartori, em estudo sobre a engenharia constitucional comparada, apontou, entre outros, o brasileiro como um sistema de governo incapaz de funcionar. Sérgio Abranches, por seu turno, estudando a sua configuração política e constitucional, chamou de presidencialismo de coalizão o sistema que estamos a experimentar. Mais recentemente, os professores Fernando Limongi e Oscar vilhena procuraram demonstrar que, apesar da crítica de Sartori e da desconfiança de Abranches, o presidencialismo de coalizão funciona. O país, afinal, resolveu, institucionalmente, as crises pelas quais passou nos últimos anos. Mais do que isso, o Executivo tem conseguido impor as políticas que, com o apoio do Legislativo, procura implementar. Não há, portanto, paralisia governamental. Importa, todavia, perguntar, a que custo funciona? O custo, responda-se logo, é altíssimo. E não é apenas econômico.
O presidente da República, entre nós, acumula competências que, para citar apenas um exemplo, o estadunidense está longe de possuir. Tem iniciativa de lei e de emenda à Constituição, algumas leis sendo inclusive de sua iniciativa exclusiva, pode editar medidas provisórias e leis delegadas, pode nomear livremente os seus ministros (nos Estados Unidos há necessidade de aprovação do Senado), aliás em número exagerado, dispõe de milhares de cargos em comissão, pode contingenciar o orçamento que no Brasil, ao contrário de outros países, não é vinculante, inclusive as dotações derivadas de emendas parlamentares, dispondo, ainda, de verbas que distribui para estados e municípios em função de critérios políticos e, portanto, pouco racionais ou transparentes (transferências voluntárias). Pois esse presidente forte do ponto de vista jurídico; sob o ângulo político, diante da fragmentação do sistema partidário, da fragilidade dos mecanismos de sanção das condutas marcadas pela infidelidade do mandatário às diretrizes da agremiação, do modo de composição da Câmara dos Deputados (não representativo da população dos estados) e do papel exercido pelo Senado Federal (câmara revisora para todos os temas), tem dificuldades não propriamente para compor maioria, mas antes para manter a disciplina dos aliados, alguns deles fiéis, outros tantos oportunistas. Aqui reside a sua fraqueza. Que não importa em ingovernabilidade, como supunha Sartori, tanto que 85% das leis aprovadas pelo Congresso Nacional são de iniciativa ou de interesse do Executivo. O problema é o custo da governabilidade, um custo de tal modo transbordante que implica práticas transitando na contramão das promessas do constituinte em relação à boa governança e aos princípios reitores da administração pública. O mensalão representaria de modo eloquente o que vem de ser afirmado. A exigência de governabilidade, que não é garantida de modo institucional, reclamaria uma espécie de realismo político suficiente para justificar determinadas condutas administrativas heterodoxas que vão sendo aceitas com naturalidade e despudor.
Daí o grande número de cargos em comissão, que são distribuídos entre os partidos aliados, a partilha dos ministérios e de outros importantes órgãos e entes públicos entre os membros da coalizão, a distribuição de verbas para governadores politicamente próximos por meio de transferências voluntárias, o mesmo ocorrendo com organizações do terceiro setor, as obras executadas nos municípios amigos, a liberação a conta gotas, e em momentos que precedem relevantes votações no Congresso Nacional, das emendas parlamentares ao orçamento, o rigor administrativo seletivo, a advocacia administrativa impulsionando a tomada de decisões, os aditamentos de contratos, certas dispensas e inexigibilidades nos processos licitatórios, a redação pelos próprios licitantes dos editais de concorrência, a bondade na aferição da qualidade e da quantidade nas obras públicas, etc. Em síntese, todos os esforços para a melhoria da gestão pública ficam comprometidos pela lógica política perversa que contamina o que devia constituir trabalho planejado, racional, impessoal, transparente, probo e eficiente.
Nem se afirme que em outros importantes países a maioria também é composta em função de acordos ou da associação entre vários partidos. Isso é verdade, mas o resultado é distinto porque o acordo político supõe obrigatória definição de um plano de governo, sendo certo que a concertação envolve isso, tudo isso e apenas isso. Depois, em função do plano, os nomes são escolhidos e o governo governa sem as práticas comuns por aqui, podendo ser cobrado exclusivamente quanto à fidelidade de sua ação ao plano aprovado em conjunto. Percebendo isso, não podemos negar que temos um problema. O nosso problema, afirme-se nesta altura, não é propriamente cultural, como querem alguns, mas institucional. O brasileiro não é alguém especialmente vocacionado para as práticas administrativas condenáveis. São as instituições que precisam ser aperfeiçoadas. Talvez seja oportuno entender que a melhoria da administração pública, para além das medidas usualmente apontadas pelos juristas e gestores, todas sem dúvida necessárias, reclama também um olhar cuidadoso incidente sobre a nossa máquina constitucional, essa máquina que está falhando na entrega daquilo que foi prometido há quase vinte e cinco anos e que, por isso, merece reparos.
 
by Clèmerson Merlin Clève, professor-titular das Faculdades de Direito da UFPR e da UniBrasil, vice-presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democráticos (ABCD).
 
 
 
 

O jurista dos vinhedos

Quando as aulas de uma turma de doutorado terminam, José Gomes Canotilho leva seus alunos para conhecerem seu vinhedo, na cidade de Pinhel, no interior de Portugal. A propriedade que o jurista herdou do pai agricultor é a paixão da família. Ele contou sobre as videiras em uma entrevista exclusiva à reportagem da Gazeta do Povo, quando esteve em Curitiba para o X Simpósio Nacional de Direito Constitucional, no fim de maio. Canotilho contou também sobre como, em 1975, reuniu-se em sua casa com alguns companheiros comunistas para redigir, em menos de uma semana, a Constituição de Portugal. Seus olhos marejam quando relembra a noite de maior solidão de sua vida: quando precisou decidir se ia ou não para a guerra. O jurista também explicou a evolução da teoria da constituição e avaliou as mudanças na Constituição Brasileira e a atual realidade da Comunidade Europeia.
 
 
 
O senhor defendeu por um tempo a constituição dirigente, mas depois passou a defender que a sociedade civil deve garantir alguns direitos e não “tanto” o Estado. O que levou o senhor a mudar de opinião?Não podemos esquecer de que participei da elaboração do projeto da Constituição portuguesa pelo partido comunista. E, curiosamente, o projeto do partido comunista foi feito na minha casa durante uma semana, com a minha mulher a alimentar três ou quatro pessoas. Na nossa perspectiva, a Constituição era o elemento que fazia parte da metanarrativa de libertação e de construção de uma sociedade socialista. E nesta perspectiva que se deve localizar a minha ideia de reflexão sobre o sentido de constituição dirigente. A própria norma constitucional era uma alavanca de Arquimedes na transformação social. Tendo em conta a evolução em sentido contrário, a queda do muro de Berlim e a dificuldade de transformação, no fundo uma norma fundamental é importante, mas, sem suporte social, sem suporte participativo, de mobilização, dificilmente uma norma é uma norma dirigente. É neste sentido, não é fuga.
 
Leia na íntrega aqui.
 
 

A juristocracia do novo Código de Processo Civil

Consta que dia 19 de setembro ocorrerá a apresentação do relatório do projeto do novo CPC na Câmara dos Deputados. Isto me fez lembrar de uma notícia que saiu na Folha de S.Paulo do dia 12 de setembro de 2012, em que dois professores, Antonio Claudio da Costa Machado e Ives Gandra Martins, fizeram ácidas críticas ao referido projeto. Em resumo, os juristas apontavam um fortalecimento dos poderes do juiz, que poderia proferir decisões antecipatórias (com base em mero “fumus”), sendo que suas decisões possuiriam executividade imediata (com a retirada da aplicação em regra do efeito suspensivo), determinar ex officio provas e técnicas executivas, além de proferir decisões embasadas em conceitos indeterminados e “valores”.
De pronto, cabe dizer que coaduno parcialmente com a preocupação dos professores. Não que eles estejam plenamente corretos, do ponto de vista dogmático, pois em alguns pontos, o tom alarmista não é plenamente correto. Também não dá para concordar com a assertiva de que não necessitamos de um novo CPC.
Avanços apenas “potencialmente consistentes”
É claro que o CPC projetado traz alguns avanços consistentes. Na verdade, “potencialmente” consistentes. Porque de nada adiantará ver o novo com os olhos do velho. Lembrem sempre do que o Superior Tribunal de Justiça fez com o artigo 212 do CPP (ou seja, mesmo que o legislador tenha dito que o juiz somente poderá fazer perguntas complementares, nem juízes, nem STJ e nem o STF deram “bola” para a alteração!). Assim, de que adiantará exigir do juiz que enfrente todos os argumentos deduzidos no processo (o artigo 500 do projeto coloca essa exigência, corretamente, aliás, como requisito essencial da sentença) se ele tiver a liberdade de invocar a “jurisprudência do Supremo” (sic) de que o juiz não está obrigado a enfrentar todas as questões arguidas pelas partes?
Quero dizer: adianta somente mudar a lei? De que adianta tudo isso, se o juiz possui livre convencimento? Aliás, sobre o solipsismo stricto sensu, corolário do paradigma epistemológico da filosofia da consciência,[1] basta ler o artigo 379: “O juiz apreciará livremente a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.”
Sendo mais claro, o fato é que não avançaremos enquanto não nos termos conta da necessidade de seguirmos/construirmos uma teoria abrangente do processo para guiar a nossa interpretação dos dispositivos legais (novos ou velhos: veja-se que boa parte deles não precisariam sequer estar explicitados no CPC, como o artigo no qual se veda as “decisões de surpresa”: bastaria aplicar, correta e diretamente, a velha cláusula do contraditório). Sim, precisamos de uma teoria para aplicar o Direito — que é alográfico, e não autográfico, na acertada observação de Eros Grau. E uma teoria que se dedique a refundar o processo, a partir da Constituição (a comissão de notáveis responsável pela redação do anteprojeto de CPC falava na necessidade de se conseguir “sintonia fina” entre o texto infraconstitucional e a Constituição), deve começar respondendo exatamente isso: o que é um processo jurisdicional democrático? Não me parece que o projeto responde a essa pergunta.
É a partir dessa pergunta e da resposta que se dê a ela que saberemos em que pé estamos, em termos de avanços ou retrocessos democráticos. Parece correto dizer, por exemplo, com Dworkin (e aqui indico o livro Levando o Direito a Sério, de Francisco Motta, Livraria do Advogado, 2012), que uma Constituição como a nossa adota uma “teoria moral” específica: a de que o cidadão tem direitos “contra” o Estado. E que, nesse sentido, as cláusulas constitucionais deveriam ser compreendidas não como formulações específicas, mas como restrições, limitações ao Poder Público, sempre favorecendo a preservação dos direitos dos cidadãos. Sendo assim, a nossa pergunta pelo processo jurisdicional democrático começa a ser respondida da seguinte forma: o processo deve ser pautado por direitos e suas disposições têm o sentido de limite, de controle.
O processo (falo aqui do processo jurisdicional, mas essa observação serve também ao processo legislativo) deve servir como mecanismo de controle da produção das decisões judiciais. E por quê? Por pelo menos duas razões: a uma, porque, como cidadão, eu tenho direitos, e, se eu os tenho, eles me devem ser garantidos pelo tribunal, por meio de um processo; a duas, porque, sendo o processo uma questão de democracia, eu devo com ele poder participar da construção das decisões que me atingirão diretamente (de novo: isso serve tanto para o âmbito político como para o jurídico). Somente assim é que farei frente a uma dupla exigência da legitimidade, a mediação entre as autonomias pública e privada. Sou autor e destinatário de um provimento. Por isso é que tenho direito de participar efetivamente do processo. É com essa mirada que deve ser feita uma “olhatura” no projeto que ora a Câmara dos Deputados apresenta à sociedade.
Há de se perceber que o projeto no seu artigo 10 adota desde sua redação original a garantia do contraditório como garantia de influência e não surpresa, que deveria nortear todo o debate processual, o que já é defendido por parcela doutrina pátria há bons anos, em especial por Dierle Nunes (in: O recurso como possibilidade jurídica discursiva do contraditório e ampla defesa. Puc-Minas, 2003, dissertação de mestrado; também O princípio do contraditório, Rev. Síntese de Dir. Civ. e Proc. Civil. v. 5. n. 29. p. 73-85, Mai-Jun/2004; Nelson Nery Junior defende essa questão mesmo antes da reforma legislativa, em seu Princípios do Processo na Constituição Federal, 10.ª ed., SP: RT, 2010, n. 24, p. 207 et seq). Caso a leitura do princípio imposta expressamente informasse todo o texto do projeto na sequência dos seus preceitos projetados, boa parte dos ranços autocráticos e sociais (no sentido negativo) teriam sido mitigados.
Ainda se percebe a adoção confessada, na redação da Câmara, de um perfil comparticipativo de processo (e refiro novamente as posições inteligentes de Dierle Nunes (Processo Jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008), tese essa defendida também pela Escola Mineira de Direito Processual — chamado pelo projeto de processo cooperativo. Esta assunção propagada por muitos poderia promover, caso se fizesse uma análise superficial do projeto, a discordância integral com o pensamento dos referidos juristas, pois estaríamos assumindo verdadeiramente bases democratizantes do modelo processual projetado.
No entanto, ao se fazer uma análise mais detida do CPC projetado, cuja atual redação da Câmara conta com 1.088 artigos, vislumbra-se que as bases fundantes do projeto e muitas de suas técnicas partem do serôdio e desgastado modelo social protagonista, que impõe o evidente receio de mantença da matriz autoritária de processo social, capitaneado pelas correntes instrumentalistas, que acreditam, de modo romântico, nas virtudes soberanas do decisor e em sua capacidade de antever o impacto decisório (político, econômico e social). Esse é o maior equívoco do projeto. Assume uma postura participativa, só que aposta no protagonismo (solipsista). Aliás, é um equívoco que corrói a raiz do projeto. Incrível como os fantasmas de Oskar Von Büllow, Menger, Klein e outros continuam a atazanar os processualistas brasileiros. Os instrumentalistas — mormente eles— continuam a acreditar que a solução do processo está no “protagonismo judicial”.
Aliás, nesse ponto as críticas de Machado e Gandra procedem. Nesses termos, teleologicamente as críticas expendidas pelos juristas vão no alvo. Só que o caminho até elas é que merece uma discussão maior. Ao que li e ouvi das críticas e propostas de Costa Machado, ele propõe uma reforma do atual Código, considerado por ele como “o melhor do mundo”. Preocupa-me não somente essa ode ao velho CPC, mas também a ausência de uma crítica filosófica ao aludido projeto. Aliás, são poucas as críticas — da comunidade jurídica em geral — no que toca ao fundamento filosófico do projeto. E isso é grave (não a crítica de Costa Machado e Gandra Martins; refiro-me a ausência de uma crítica de cariz filosófico da comunidade jurídica em geral).
A juristocracia em marcha
O que está por detrás dessa verdadeira juristocracia proposta no projeto do novo CPC? Vários juristas brasileiros — processualistas com formação filosófica — vêm fazendo pertinentes críticas a alguns pressupostos do projeto desde sua redação original. Mas, registre-se: não apenas ao projeto, mas a uma tradição instrumentalista (socializadora, no sentido negativo) que já consta no atual CPC (e disso Costa Machado, crítico do novo projeto, não se dá conta). Nesse sentido, cito Dierle Nunes, Marcelo Cattoni, Adalberto Hommerding, Francisco Motta, Rafael Tomaz de Oliveira, Georges Abboud, José Miguel Garcia Medina, entre outros).
 
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by Lenio Luiz Streck

A pátria de toga

Desde que os ministros do Supremo Tribunal Federal caíram nas graças dos holofotes, este país anda diferente. Tem um ânimo diferente. Mais que famosos, os jurisconsultos do STF ganharam ares de celebridades, de pop stars. A plateia já os conhece bem: um é poeta e budista, o outro tem dores na coluna e pavio curto, há aquele que, premido pelos prazos processuais, não corta mais o cabelo, e há também o tal que inventa neologismos jurídicos (“gestão tenebrosa”). Hoje, um brasileiro médio, que não tem a menor ideia do nome do vice-prefeito de sua cidade, é capaz de reconhecer na rua um ministro do Supremo. Nunca um julgamento da nossa mais alta corte foi seguido com tanto apetite, de forma tão eletrizante. Estamos mergulhados num frisson judicante, em clima de reality show. O país anda de fato diferente.
Há quem não goste, claro. O deputado federal Arlindo Chinaglia (PTSP) declarou há poucos dias, sem citar nomes, que “um ou outro” ministro do STF vem adotando um comportamento por demais “midiático”. Em tese, o parlamentar petista até que teria razão. Juiz de direito não é para ficar por aí se exibindo em colunas sociais. No caso específico, porém, devemos abrir uma exceção às normas rígidas da etiqueta dos tribunais e admitir que, embora não seja ortodoxo, é bom, ou melhor, é ótimo que os ministros do Supremo estejam o tempo todo ao alcance dos olhos da nação. Apesar do efeito colateral – esse estrelismo um tanto fora de termos –, a visibilidade lhes cai bem: a sociedade entende melhor o julgamento do mensalão à medida que conhece a personalidade dos juízes.
 
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by Eugenio Bucci

Imunidade e isenção não é favor fiscal

Entende-se por isenção fiscal a dispensa de recolhimento de tributo que o Estado concede a determinadas pessoas (físicas ou jurídicas), em face de situações específicas, mediante leis ordinárias. Significa dizer que, havendo autorização legislativa, diante de circunstâncias específicas, o Estado pode, ou não, cobrar o tributo devido pelo sujeito passivo em um determinado período, ou deixar de fazê-lo em outro distinto momento.
O instituto da isenção, geralmente regido por leis infraconstitucionais, é diverso da figura da imunidade, disciplinada pela Constituição Federal e voltada ao tributo da espécie imposto. A imunidade somente poderá ser criada, revogada ou modificada por meio de emenda constitucional.
 
Não é favor
Pode-se dizer que quando o Estado, via legislador constituinte, estabelece as imunidades, ou, valendo-se do legislador ordinário, concede as isenções, não está fazendo nenhum favor ao particular. Em regra, ocorre o contrário: é o próprio particular quem está favorecendo o setor público, realizando funções que suprem, e em muitos casos até substituem, deveres inafastáveis da administração pública.
Assim, injusto – não raro inconstitucional - tributar pessoas ou entidades que auxiliam o Estado no atendimento de serviços de interesse coletivo, como o fazem algumas das pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos. São exemplos disso o Sesc e suas congêneres formadoras do Sistema “S” (Senac, Sesi etc), que complementam relevantes atividades estatais e, por isso, são protegidas pelo manto constitucional da imunidade, com dispensa do pagamento de impostos.
Para as entidades sociais não beneficiadas pelo regime da imunidade constitucional, existem as isenções gerais que se aplicam, por exemplo, às fundações de direito privado, cujo objeto é o desenvolvimento de atividades culturais, recreativas, científicas ou filantrópicas.
O regime de isenção será geral – para todas as fundações – ou específico, quando exigir o enquadramento dos entes fundacionais em determinados requesitos, entre os quais o reconhecimento de utilidade pública federal e estadual ou do Distrito Federal ou municipal e o Certificado ou Registro de Entidade de Fins Filantrópicos, fornecido pelo Conselho Nacional de Serviço Social, renovado periodicamente.
Barreiras
O poder público, no afã de aumentar cada vez mais sua arrecadação, vem criando inúmeras limitações ao gozo da isenção, por vias tortuosas e questionáveis, estabelecendo restrições que a Constituição Federal não autoriza.
Além de limitações, observa-se, ainda, a tendência de se substituir não só o instituto da isenção como o da imunidade por meros benefícios legais, cuja garantia passa a depender de meros atos do Poder Executivo, não raro viciados graças à cultura dos “favores”, isto é, do toma-lá-dá-cá.
Tais investidas depreciam atividades de inestimável valor social, aumentam a interferência da burocracia estatal no terceiro setor e nada contribuem para a transparência da gestão da coisa pública.
 
by  José Alexandre Saraiva
 
 

domingo, 2 de setembro de 2012

As lições que vêm do Supremo

Ainda que muita água vá rolar por debaixo da ponte, a condenação de João Paulo Cunha e de Marcos Valério surpreende aqueles que apostavam que tudo terminaria em pizza
A semana que findou trouxe um novo alento aos brasileiros que ganham o pão com o suor do trabalho diário, que pagam os impostos com o dinheiro do próprio bolso e mostram indignação e inconformismo com a corrupção e a impunidade que grassam soltas país afora. Para esses, o sentimento deve ser o de alma lavada com as primeiras decisões emanadas do Supremo no tocante ao julgamento do processo do mensalão. Por esmagadora maioria – 9 votos contra apenas 2 a favor da absolvição – os ministros condenaram pelo conjunto das provas e evidências os réus João Paulo Cunha, deputado federal (PT-SP); o publicitário Marcos Valério e seus sócios; e o ex-diretor de Marketing do Banco do Brasil Henrique Pizzolato. Os crimes a eles imputados são os de peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva; alguns dos réus ainda voltarão a ser julgados por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.
É bem verdade que o julgamento, desdobrado em núcleos para facilitar o rito, ainda vai demandar algumas semanas para o seu fim e, desde já, é grande a expectativa com o destino a ser dado a outros réus, entre eles o ex-ministro José Dirceu, apontado pela Procuradoria-Geral da República como o mentor da denominada “organização criminosa” que se instalou na cúpula do primeiro governo Lula visando à compra de parlamentares da base aliada. Ainda que muita água vá rolar por debaixo da ponte, a condenação de um petista de alto coturno como João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara, por receber R$ 50 mil em propina, e de Marcos Valério, o operador do mensalão, surpreende aqueles que apostavam que tudo terminaria em pizza.
Demonstrando total conhecimento da matéria processual e refutando os argumentos pueris da inexistência de provas utilizados pelos acusados e seus advogados, os ministros do STF reconheceram a materialidade dos crimes cometidos em sua exata dimensão de gravidade. As exceções ao colegiado foram os ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, que não conseguiram ver evidências de culpa nos atos praticados por João Paulo Cunha. No tocante a Toffoli, a se lamentar a sua participação no julgamento, uma vez que por muitos anos militou junto ao PT e, por isso, em respeito à toga que enverga, deveria ter se autoproclamado impedido.
É importante também salientar que as primeiras condenações sepultam definitivamente o mantra repetido à exaustão nas hostes petistas: o de que o mensalão nunca existiu, tratando-se, quando muito, de desvio de recursos de campanha não contabilizados, o conhecido caixa 2. A admissão, pela maioria dos ministros, dos crimes cometidos por João Paulo, Marcos Valério e cia. deve ser entendida até aqui como um claro acatamento à denúncia do procurador-geral, que viu no mensalão uma engenhosa trama criminosa a serviço de um projeto de poder.
O processo será retomado nesta segunda-feira, quando estará sendo decidida a sorte de representantes de instituições financeiras envolvidos no mensalão, sob a acusação de gestão fraudulenta. De qualquer sorte, independentemente do resultado de mais esta etapa do processo, um ponto já pode ser considerado como extremamente positivo: a impunidade que sempre serviu como fator de incentivo à prática de ilícitos no setor público está em via de sofrer um sério revés. O que se espera no porvir é que as lições deste julgamento histórico na mais alta corte de Justiça do país descortinem um novo patamar ético para a nação, onde não será mais admissível existir espaço para aqueles acostumados a fazer da coisa pública um mero instrumento para a obtenção de vantagens indevidas para si ou para grupos.
 

Controlando o Leviatã fiscal: a luta pelo Código de Defesa dos Contribuintes

A ditadura militar findou há um quarto de século, mas há um setor da administração pública cujos comportamentos e práticas abusivos, bem como maus modos, ainda lembram os daquele período. De fato, o fisco ainda trata o contribuinte como um súdito e não um cidadão. Em todos estes anos, o que se assistiu foi o implacável recrudescimento dos mecanismos fiscais de compressão do contribuinte: floração de obrigações acessórias; quebra de sigilo bancário sem prévia autorização judicial; fixação de sanções desproporcionais, especialmente multas; apreensão de bens e mercadorias em casos que não envolvem contrabando; e outros tantos meios abusivos para dificultar ou até impedir o exercício de atividades empresariais legítimas. Multipliquem-se tais exigências e outras tantas pela União Federal, pelos vinte e seis Estados (mais Distrito Federal) e pelos mais de cinco mil municípios brasileiros, e o resultado é não só o carnaval jurídico tributário de que falava Alfredo Augusto Becker, mas o inferno tributário.
O Leviatã fiscal, que nele habita, agiganta-se e multiplica-se, pois todas as instituições do país, tanto públicas como privadas, são transformadas em servos, agentes arrecadatórios, por via da retenção na fonte de tributos, das declarações sobre operações praticadas por terceiros, do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED), etc. Mais intrusivo que o Big Brother Brasil (BBB) é o BBF (Big Brother Fiscal), que lança uma rede digital de vigilância e monitoramento eletrônicos sobre todos.
Contra essa avalanche, os direitos e garantias previstos na Constituição e no Código Tributário Nacional já não oferecem anteparo suficiente. Há patente necessidade de complementá-los com regras de caráter mais específico. Além disso, também é desejável uma ampliação do rol de direitos do contribuinte, para fazer frente ao ininterrupto fortalecimento do poder do fisco. Por isso, oportuna a retomada de interesse na elaboração de um Código de Defesa do Contribuinte, a partir de projeto apresentado em 2011 pela Senadora Katia Abreu (PLS 298/11).
Esse projeto, que é muito inspirado no Código de Defesa do Contribuinte do Paraná (Lei Complementar Estadual 107/05), aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Porém, vale lembrar que projeto anterior sobre o mesmo tema, apresentado há mais 10 anos pelo senador Bornhausen, foi simplesmente abandonado no Senado, até ser finalmente arquivado. Assim, se não houver engajamento da sociedade civil, é provável que o atual tenha o mesmo destino do primeiro: o depósito legislativo atulhado de boas intenções que não encontraram apoio para se tornarem realidade legal.
Com isto em mente, diversas entidades paranaenses (OAB/PR, FIEP, ACP, CRC, FECOMÉRCIO, SESCAP, entre outras) constituíram o Fórum de Defesa do Contribuinte e deflagraram mobilização em torno do tema, buscando não só apoiar o projeto, mas também aperfeiçoá-lo. E, após diversas rodadas de discussões, apresentaram, no dia 12 de julho, um conjunto de propostas ao relator do projeto na CCJ, senador Armando Monteiro.
Entre as principais: aperfeiçoamento do devido processo legal na esfera administrativa, tanto antes como após o lançamento tributário; vedação do uso de todo e qualquer meio coercivo na exigência de tributos; transparência tributária, permitindo aos contribuintes pleno conhecimento dos tributos que recolhem e da destinação dada a esses tributos; proteção mais efetiva do sigilo fiscal; simplificação do sistema tributário, pondo-se um freio à multiplicação até hoje incontrolada de obrigações acessórias; limitação de multas, juros e outros encargos abusivos impingidos ao contribuinte; maior agilidade na restituição, ressarcimento e compensação dos créditos do contribuinte; estabelecimento de prazos terminativos para julgamento de processos tributários, apreciação de petições dos contribuintes e outorga de certidões; atendimento adequado ao contribuinte nas repartições fazendárias, com criação de ouvidorias. Tudo isso para melhor proteger e garantir o contribuinte contra desmandos fiscais, mas sem impedir o uso legítimo das prerrogativas outorgadas ao Fisco nem abrir as portas para a evasão fiscal.
Enfim, trata-se de restaurar a plena cidadania no âmbito fiscal, de transformar o contribuinte de mero sujeito passivo em sujeito de direitos. Para isso, a luta apenas começou.
Leonardo Sperb de Paola, advogado, presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-PR, relator das propostas apresentadas pelo Fórum de Defesa do Contribuinte.

Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justica-direito/artigos/conteudo.phtml?tl=1&id=1279092&tit=Controlando-o-Leviata-fiscal-a-luta-pelo-Codigo-de-Defesa-dos-Contribuintes. Acesso em: 02 de set. 2012.